Clausura
"Clausura"! Neste texto Cristiane Gonzalez fala
sobre o enclausuramento neste momento de
isolamento social. A autora aborda a questão do encontro e do desencontro com o
Real, com a realidade e com o outro que se ouve e se vê de longe.
CLAUSURA
Cristiane
Gonzalez
Comecei com a quarentena em primeira
pessoa. Minha visão particular do isolamento, em casa, sozinha, e tomada pelo trabalho
que acelera além do limite, oprime e atropela, desconectado do que acontece lá
fora. A lógica corporativa, dos objetivos antes que as pessoas, se reafirma e acentua
a sua natureza cindida. Pandemia, que pandemia? Cumpram-se os prazos!
O texto nem chegou a tomar fôlego,
cortado no primeiro filtro. Da total e concreta insanidade em que estamos
imersos, desviar o foco para a loucura corporativa se revelou o delírio do
delírio. De repente era eu que dava mostras de romper com a realidade.
E se nada mais parece cabível perante esse
Real onipresente e esmagador, restaria ele mesmo como tema. A começar pelo
título – Pandemia – me lancei a dissecar essa ameaça colocada por um predador
invisível à população dominante do planeta.
Subitamente acuados e enclausurados no
topo da cadeia alimentar, assistimos a acontecimentos até então impensáveis, das
vacas invadindo as praias da Córsega, ao tubarão baleia que se aventura pela
Baía da Guanabara. E a julgar pela singularidade dessa ameaça adaptada sob
medida ao homo sapiens, é de se conjecturar se não seríamos apenas as vítimas
da vez, submetidas ao movimento natural de reequilíbrio ambiental que de tempos
em tempo atinge algumas espécies, em geral menos nobres que a nossa.
Estanquei no terceiro parágrafo, constrangida
pela pretensão científica e fundura de poça.
Finalmente, sem encontrar voz, tomo
emprestada a voz de um vizinho, que noites atrás rompe o silêncio da quarentena
gritando a plenos pulmões, A casa é minha e não quero mais você aqui!
Uma cena longa e dramática. Sem raiva,
ele urrava de dor, sempre a mesma frase, repetida muitas vezes, contaminando a
vizinhança com a sua angústia. Não se ouvia contra argumentação, e nem parecia
haver uma. Repetia sem variantes, apenas aquela declaração de desejo, e não
desejo, que parecia endereçada mais a si mesmo que ao outro.
Vesti aquele personagem trágico, que ao afirmar
a sua pretensa superioridade traía, ao contrário, o quão assustado estava diante
da própria vulnerabilidade. Não queria mais o outro, na sua casa, mas vacilava terrivelmente
ao encarar a perspectiva apavorante do confinamento solitário.
Fantasiei as pequenas traições do outro,
sua falha em demonstrar o reconhecimento esperado por ter sido recebido ali, naquela
casa – possivelmente uma casa melhor que a sua própria – agindo com naturalidade
e desenvoltura flagrantes, e denunciando desse modo a fragilidade do arranjo.
Aquela frase, repetida tantas vezes, a
casa é minha e não quero mais você aqui, era o último recurso dele para afirmar
a validade de uma dívida que o outro não reconhecia, e que por isso expunha a
sua própria.
No dia seguinte, com o sol entrando pela
janela, escancarada na noite da véspera num impulso de pouca coragem, ele sonha
com o mar. Com os pés enterrados na areia morna, se dá conta de que não escuta o
rumor característico e constante do mar, mesmo quando muito calmo, e estranha.
Uma brisa leve alivia o suor que escorre pelo seu pescoço, mas a brisa não tem
cheiro de mar, o que derruba a fantasia do sonho. Mar sem cheiro não é mar.
Será que perdi o olfato?
Pela altura do sol já é bem tarde.
Preciso ligar no trabalho, dizer que não me sinto bem, logo vão notar que estou
offline. Não é nada, apesar de ter perdido o olfato. Não, aquilo era sonho, não
tem mar nenhum aqui, nem areia, só esse sol rachando.
Digo que não estou bem, não preciso dar detalhes,
se bem que o protocolo nestes dias é o de escrutinar o bem e o mal-estar de
todos, como se fosse informação de interesse coletivo e domínio público. Vão querer
saber.
Surtei, em maiúsculas. Armei um barraco
épico, enchi a cara, tomei uma cartela de comprimidos. Estou aqui, torrando, e
não consigo me livrar do maldito sol.
Abandono o texto no dia seguinte,
perturbada pela frieza impregnada no tom, pela ausência de alma. Não me
reconheço naquele aparente embrutecimento.
O personagem analisa a reação dos
vizinhos. Os que pediam calma, os que reclamavam silêncio, e os que, como eu,
simplesmente acompanhavam sem dizer nada, todos de algum modo participando do
seu drama, pegando carona em sua catarse. Aponta que lavaram a alma, como ele,
apenas sem correr nenhum risco, a uma distância segura.
Fecho o computador e saio para o mercado
carregando um incômodo, refletindo sobre esse amortecimento das emoções que a
escrita denuncia.
A imagem que se forma é a de uma comporta,
como as que regulam o nível dos canais, e que a cada mínimo transbordamento da
maré, movem as suas engrenagens e, suspensas, fecham um pouco mais o sistema, e
impedem alagamentos de outro modo incontroláveis.
Uma defesa, erguida para a contenção de
um excesso ameaçador, além do suportável, e potencialmente capaz de arrastar
tudo, mas não chego a decifrar sua natureza, nem razões.
Dobro e a esquina e, num sobressalto, dou
com a ambulância estacionada alguns passos adiante.
Continuo pela mesma calçada, ou
atravesso para o outro lado da rua?
Os socorristas vão entrando pelo prédio paramentados
com a proteção possível, e possivelmente insuficiente, e me comovo por eles.
Aperto o passo pensando em quem espera no apartamento, desesperando sem ar, e me
desespero também, por um minuto. Então oscilo, da comoção pelo outro, para o
alívio culpado, de ser o outro.
Num movimento já familiar, a comporta se
ergue, fechando um pouco mais.
Cristiane
Gonzalez Gomes é psicanalista e engenheira, mestre em
Sistemas de Informação. É aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do
Instituto Sedes Sapientiae.
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