O divã de Drummond
Rafael Pinto Morais
é estudante do primeiro ano do Conflito e Sintoma do Departamento de
Psicanálise. Escreve neste artigo, através da leitura de alguns poemas de
Drummond, a respeito da travessia que tem que ser encarada por aqueles que não
são tão covardes para serem otimistas.
Não
estamos plenos. Nos sentimos impotentes e desamparados. E daí?
O
DIVÃ DE DRUMMOND
Por
Rafael Pinto Morais*
Considero
Elegia 1938 o poema de maior beleza
da chamada fase social de Carlos Drummond de Andrade. E desconfio que não
esteja sozinho. Em uma série de vídeos de renomados artistas recitando
Drummond, que pode ser acessada no Youtube,
Caetano Veloso tem em mãos justamente esse poema. Em uma primeira
tentativa de enunciá-lo, Caetano não consegue: com voz embargada, ele suspira e
seus olhos se enchem de lágrima. Ao invés do poema, silêncio, uma dor, o corte
para o segundo take, e só aí aparece
a bem sucedida declamação.
Ao
longo de Elegia 1938, o eu lírico
apresenta-se em tensão com a realidade objetiva. A temática do desconcerto está presente. O
mundo caducou. Seus heróis, imortalizados em estátuas nas praças, preconizam
virtudes e a concepção, mas, frente ao leve contratempo de uma garoa, fogem
acovardados para a proteção de bibliotecas. Qualquer demanda por formas e ações
que possam servir de conforto ou guia não é contemplada.
Porém,
engana-se quem vê nessa imagem algum indício de fraqueza. Não há rachaduras na
engrenagem social. Esse Outro tem a força da Grande Máquina - fria, impessoal,
indecifrável à compreensão dos sujeitos, irretocável às suas ações. Todas as
manhãs, o despertar repõe em cena o eu lírico pequenino e impotente, que não
deixa de ter sua parcela de responsabilidade, já que se entregou à burocracia
da repartição, à literatura, à conversa com os mortos. O tempo de semear já
passou, e resta ao coração orgulhoso certa resignação: “Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque
não pode, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”.
O
cenário do poema seria totalmente desolador se não fosse pela presença de pequenos
vestígios que remetem à possibilidade de mudança das coisas presentes. Sim, os
ventos da revolução, ainda que de modo singelo, se fazem ouvir. Em certa passagem, o leitor se depara com a
menção a uma felicidade coletiva que pode surgir em outro século. No último
verso, escondida entre vírgulas, a sorrateira palavra sozinho faz o apelo singelo à união dos homens para que
protagonizem o grande combate que reconstruirá tudo.
Aqui
Drummond aparece filiado a uma longa tradição na filosofia política que elege o
medo e a esperança como afetos centrais a partir dos quais se pode
descrever/prescrever as experiências políticas. Se aos olhos do sujeito o mundo
é sombrio e capaz de triturar cada expressão de uma singularidade, cada gesto
espontâneo; se o temor assola os homens cujas mãos estendidas encontram o vazio,
resta a esperança de uma proposição de conteúdo positivo. A ela se deve recorrer;
por ela se deve lutar.
A
psicanálise nos ensina uma dinâmica bem mais interessante: a da política do
desamparo, seus riscos de alienação e possibilidades de separação. Freud nunca
afirmou a existência de uma normatividade imanente a partir da qual se constroem
os sentidos para a vida. Desse modo, não apenas nos primeiros processos de
constituição do sujeito, mas também ao longo de suas mais variadas
experiências, o desamparo é a condição primordial e o ponto de partida para
algum tipo de compromisso com as determinadas formas e reivindicações da
civilização. Para os sujeitos, os resultados podem ser mais ou menos felizes,
podem trazer maior ou menor abertura ao exercício da liberdade. Tudo depende de
como lidam com seus embates internos e externos.
Lacan,
mais adiante, afirmará que o verdadeiro ganho de uma análise surge quando o
sujeito reconhece seu desamparo e a impotência do Outro em lhe dar qualquer
sustentação. Nessas condições de afirmação da indeterminação, da contingência e
do reconhecimento da fragilidade de si e do Outro, o desejo está liberto: ele passa
a operar em um registro diferente daquele em que somente empreende a incessante
busca por satisfação nos processos de objetificação.
De
modo geral, em psicanálise não há muito espaço para o par indissociável medo-
esperança. A reassunção do desamparo evita que o sujeito se deixe enredar na
repetitiva procura por reparação, cuidado, plenitude, que mais paralisa do que
impele a uma travessia. Problematizam-se as ações que são levadas adiante à luz
dos preceitos e das prescrições do dado objetivo. Dissipam-se as expectativas de um futuro
sempre por vir, cujas imagens estão justamente marcadas pelo temor - e covardia
- diante dos perigos presentes. Coloca-se em suspensão tudo o que é posto pela
fantasia que se constrói a título de refúgio. De modo geral, não há mais lugar para
o didatismo, para a positividade que pode, com sua força totalitária, fechar o
universo da criatividade, da espontaneidade e da pluralidade.
Voltemos
agora a Carlos Drummond de Andrade para lhe fazer justiça. O tom de sua poesia
muda com a publicação de Claro enigma,
em 1951. A irreverência modernista, a vontade de comunicação e o ímpeto de ação
transformadora dão lugar à desordem, à dissolução, ao desengano. Em outros
termos, o medo e a esperança são trocados pelo desamparo - e sua potência. Vejamos
apenas dois casos.
No
poema Amar, o amor é nossa condição,
e aparece prescindindo de quaisquer condições para que se atualize. O que pode uma criatura senão, entre
criaturas, amar? O sujeito deve
apenas se lançar, sem promessas, sem medidas, sem fantasias, sem esperar nada
em troca, ou até mesmo sabendo que receberá ingratidão. A entrega aos seres e
às coisas do mundo - valorosas, pérfidas ou simplesmente nulas - é o que
verdadeiramente importa. O ato possui um fim e um valor em si, e não fora, em
algo que está situado no além. E como se esse gesto não fosse corajoso o
bastante, ainda que haja falta de amor, ainda que haja tal secura, deve-se amar
o que poderia saciar mas não está presente - a água implícita, o beijo tácito.
E como se isso ainda não bastasse, deve-se amar mesmo a própria sede infinita.
Em
outro poema, surge uma personagem conhecida na literatura, a máquina do mundo.
Aqui ela se abre majestosa e circunspecta a um eu lírico desenganado, que caminha
por uma estrada pedregosa de Minas. Cabisbaixo, ele parece não buscar os
segredos da existência, porém todos estão ali, escancarados diante dele. A
máquina do mundo convida à contemplação da natureza mítica de todas as coisas; sussurra
uma irrecusável oferenda: vê, comtempla,
abre teu peito para agasalhar a riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética, essa total explicação da vida, esse nexo
primeiro e singular, o que foi
pensado, os recursos da terra dominados, as paixões, os impulsos, os tormentos,
e tudo o que define o ser (...) a ordem geométrica de tudo, etc.
O
poema termina com o eu lírico afirmando que agora é outro, um ser diferente
daquele que tudo perscrutava e pouco apreendia. Assim, baixa os olhos, desdenhando
toda a oferta que se apresenta. A máquina do mundo, repelida, recompõe-se, e
ele segue vagaroso de mãos pensas, avaliando suas perdas, pela estrada mineira.
Penso
que A máquina do mundo não faz o retrato
de um puro abatimento, de uma simples acídia sem grandes consequências. Arrisco
uma leitura: este novo eu lírico de Drummond aprendeu algo com os projetos
fugidios e as empreitadas frustradas do antigo. Há aqui o alerta de que pouco importa
o que está dado previamente por uma voz alheia. Os sentidos que advêm do Outro,
ainda que possam ser reveladores de alguma verdade secreta das coisas, ainda
que possam servir até para dominá-las em algum grau, se aceitos, cobram o alto
custo da alienação. Desse modo, é preciso caminhar pelas estradas pedregosas de
Minas, é preciso voltar-se às vivências próprias, avaliar as perdas do passado
para, quem sabe então, poder significar o mundo a partir de si e agir na esfera
terrena, em que bem ou mal está dada a luta de cada dia. A crítica literária afirma
que, em Claro enigma, Drummond é um escritor,
acima de tudo, maduro. Nada mais correto.
Ainda,
resta uma questão: o que fez Drummond se afastar do medo e da esperança rumo ao
desamparo e seus desdobramentos? Encontro uma possível resposta neste trecho de
uma entrevista concedida pelo poeta ao jornal Folha de S. Paulo, em 1984:
Posso dizer sem exagero, sem fazer
fita, que não sou propriamente um escritor. Sou uma pessoa que gosta de
escrever, que conseguiu talvez exprimir algumas de suas inquietações, seus
problemas íntimos, que os projetou no papel, fazendo uma espécie de psicanálise
dos pobres, sem divã, sem nada. Mesmo porque não havia analista no meu tempo,
em Minas.
Rafael Pinto
Morais é aluno do 1º ano do curso Conflito e Sintoma, do Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É formado em Filosofia pela USP e em
Letras pela PUC-SP, onde também obteve o título de Mestre em Ciências Sociais.
Texto belíssimo e alimentador da serenidade humilde do desamparo aceito e transformado em escrita que flui do íntimo para o papel sem se preocupar com a identidade de escritor. Excelente alimento para o desamparo em tempos de pandemia.
ResponderExcluirLindo texto...propõe uma ótima reflexão dobre os belíssimos poemas do nosso eterno Drummond....muito.grata por esse carinho em forma de palavras de amor e esperança!!!!
ResponderExcluir