Nelson Rodrigues e o Problema Econômico do Psiquismo


Nossa colega Gisele Senne de Moraes evoca trechos de duas perturbadoras crônicas de Nelson Rodrigues sobre a gripe espanhola para pensar a angústia nos dias atuais.

Nelson Rodrigues e o Problema Econômico do Psiquismo
Gisele Senne de Moraes

Em meio às recorrentes mensagens virtuais, recebi um link para uma página do site da Biblioteca Nacional com o seguinte título: “Quem não morreu na Espanhola? - Memórias de Nelson Rodrigues no Correio da Manhã”, onde são lembradas duas crônicas deste autor sobre a gripe espanhola (“peste”). Nelson Rodrigues tinha seis anos quando a “peste” assolou o Rio de Janeiro. Suas agudas palavras nos conduzem para memórias de uma tragédia. Recomendo a leitura das crônicas, publicadas nos dias 08 e 09 de março de 1967, no Correio da Manhã (link no final do texto).

“A morte estava no ar e repito: - difusa, volatizada, atmosférica; todos a respiravam”, disse o autor. Esta passagem me fez pensar no comentário de um paciente que disse, no início da pandemia, ter a sensação de que um tsunami nos espreitava. Já havia tensão no ar, notícias de mortes advindas do desamparo chegavam então da Itália. Note-se, não se tratava de qualquer morte, era a morte resultante da incapacidade do humano em oferecer cuidados; que impunha aos representantes da medicina uma escolha impossível; abafada, solitária e difícil de engolir. Semana após semana, ouvimos a repetição do mantra de que agora a onda chegaria, o que talvez tenha contribuído para o acúmulo de tensão no ar. Na atmosfera, a morte ainda não dominava, havia mais a incerteza sobre o porvir, algo, diga-se, inerente à vida, mas que tratamos de esquecer para podermos ter alguma sensação de constância.

Agora nos acompanham o crescimento das mortes, com rostos desconhecidos ou não, além do excesso de números, gráficos, projeções, opiniões de especialistas... Somados a um sem número de incertezas que permanecem: funcionamento do vírus, (in)capacidade de nossos sistemas de saúde, polifonia de discursos sobre o enfrentamento da tempestade, que já nos assola... Tudo isso aumentando a tensão em nossos ares. 

Fiquei imaginando o acúmulo de tensão no ar, difusa e volatilizada, tal como energia sem objeto. Isso é Freud, lembremos do Pequeno Hans, cuja fobia fornecia objeto (ligação) ao acúmulo de tensão. Na inexistência de objeto, a angústia pode entrar em jogo massivamente. Em Silvia Bleichmar, que acompanha Freud, essa tensão poderia ser compreendida como uma energia caótica produtora de agitação, inclusive corporal. Lembremos, com Freud e Bleichmar, que o psiquismo humano busca conciliar as diferentes instâncias com o menor gasto energético, prerrogativa do princípio do prazer/desprazer. No entanto, o caminho depende da capacidade que cada psiquismo possui para lidar com o acúmulo de tensão. Esta ideia talvez nos forneça alguns elementos para refletirmos sobre diversos fenômenos que acompanhamos em nossas clínicas: da dificuldade de concentração à certa confusão relacionada à temporalidade, por exemplo. Não cabe aqui aprofundamentos, citei Bleichmar pois ela traz contribuições para estas reflexões.

Diante da possibilidade de angústia massiva, algo capaz de implodir nosso psiquismo, podemos lançar mão de uma série de defesas psíquicas. Poderia haver na negação do risco, talvez presente em muitos dos que parecem não temer contágio, uma defesa psíquica? Ou poderia a preocupação exclusiva com a economia, em pessoas que possuem condições financeiras, ter algo de defensivo, talvez angústia deslocada da possibilidade real de morte? Não sei, em psicanálise, cada caso é um caso.

Traduzo uma frase de Carlos Schenquerman sobre sua experiência durante os terremotos de 1985, que arrasaram a cidade do México: “Um pouco como brincadeira, um pouco sério, já esgotado pela tensão vivida e pela montagem dos acontecimentos históricos que determinam o que Freud chamou de séries complementárias, eu disse: ‘Basta, acabem conosco de uma vez” (p.10). A certeza do fim se mostrava, por um átimo, menos sofrida que a angústia da incerteza.

Voltemos a Nelson Rodrigues: “A peste deixara nos sobreviventes, não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Eu me lembro de um vizinho perguntando:-‘Quem não morreu na Espanhola?’”. O tédio indiferença diante da morte poderia, neste relato, estar em composição com uma escolha pela vida? Novamente, não sei. Tudo que me cabe, por enquanto, é dar asas para minha imaginação, ela pode sair por aí e voar. E fiquei aqui, mais uma vez, imaginando. Agora sobre o quanto da tragédia vivenciada pelo menino restou na força do texto rodrigueano.

Referências Bibliográficas:
Schenquerman, C. (2010). Prólogo. Em: Bleichmar, S. (2010) Psicoanálisis Extramuros: puesta a prueba frente a lo traumático. Buenos Aires, Argentina: Editorial Entreideas.

Gisele Senne de Moraes é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes, doutoranda e mestre em psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gaza como Metáfora

Destraumatizar: pela paz, contra o terror

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon