Efeitos desse Tempo


Em Efeitos desse Tempo, Yone Maria Rafaeli trata do descompasso que vivemos. Da brecha funda que se abriu entre tempos, entre o lembrado e o não sabido. Já que sabemos pouco, cuidemos do perto.

 Foto créditos - J. Enrique R. B. Pico

Efeitos desse tempo.                                                      

Ainda tenho quatro bananas.

Ainda tenho 2 horas para chegar em casa, tomar banho, me arrumar e chegar ao cinema...

Nossa!  Combinei com a Cléo que estaria no café do teatro as 19:30 horas... Estou atrasada, mas já estou chegando...o trânsito está péssimo, mas o waze me diz que em meia hora eu chego.

Cenas de janeiro de 2020 no calendário.  Não passou tanto tempo assim, mas no registro das memórias elas estão bem longínquas.  São cenas que não fazem links com as experiências do momento.  Não tem sessão de cinema para ir, não tem mais café marcado com as amigas.

A nostalgia do vivido retorna quando minha irmã diz na tela do celular:  vou te mandar uma receita de bolo deliciosa e que é uma porção individual – lógico que é essa que eu preciso, já que estando eu sozinha, o último bolo que fiz teve que ser congelado, pra não comer tudo sozinha, antes que estragasse por falta de convidados.

Recebo a receita: bolo de rum. Mas será que tenho rum aqui em casa?

Sim, aquela garrafa que comprei na viagem à Cuba. Viagem maravilhosa!  Passeios pela ilha de Fidel: Havana, Varadero, Santa Clara, escadarias de música, mar do Caribe, todos juntinhos dentro de um carro, cantando com o motorista cubano – que alegria!!!  Cenas sem data para se repetir?

Hoje pela manhã escuto no Podcast Café da manhã, sobre os passaportes da imunidade – o planeta entrando em nova era para podermos circular pelo mundo. Agora, há risco de formarmos castas a partir dos controles sanitários.

Novas referências para se relacionar.  Sem abraços, sem beijos, mas máscaras, álcool gel, distanciamento físico e social.

Todas as telas que se abrem me fazem lembrar e relembrar a cada minuto, que sou grupo de risco, que posso ser riscada da vida como os quase 11 mil mortos. 

Tristeza e dor da perda dos entes queridos, que ficam sem poder ser ritualizada, dor que dói e vai doer mais e mais....

Dor de ver nossa herança musical indo....

Resposta do tempo: “sussurra que apaga os caminhos... aprisiona e liberta... o tempo... ele zomba de quando chorei, ele sabe passar e eu não sei... sussurra que apaga os caminhos... mas eu desperto, eu posso, ele não vai poder me esquecer.”

Túnel do tempo; quem me dera agora eu tivesse alegria, alegria, para caminhando contra o vento, houvesse uma Roda Viva, com voz ativa pro nosso destino mandar.

Mas eis que chega o destino e leva o tempo a girar, sem direção. Não posso no meu destino mandar.

Prepara o seu coração pras coisas que ainda não sei contar, tempo de ver a morte sem chorar, que está fora do lugar, vai dando voltas no meu coração, em Disparada.

Hoje, eu só sei que daqui a 4 dias, vou ao mercado comprar bananas.

Yone Maria Rafaeli é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, ex-membro do Serviço de Psicologia da Derdic-Puc-SP.  É coorganizadora do livro Audição, Voz e Linguagem: a clínica e o sujeito. São Paulo: Cortez, 2006.

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