Efeitos desse Tempo
Em
Efeitos
desse Tempo, Yone Maria Rafaeli trata do descompasso que vivemos. Da
brecha funda que se abriu entre tempos, entre o lembrado e o não sabido. Já que
sabemos pouco, cuidemos do perto.
Efeitos desse tempo.
Ainda tenho quatro
bananas.
Ainda tenho 2 horas
para chegar em casa, tomar banho, me arrumar e chegar ao cinema...
Nossa! Combinei com a Cléo que estaria no café do
teatro as 19:30 horas... Estou atrasada, mas já estou chegando...o trânsito
está péssimo, mas o waze me diz que em meia hora eu chego.
Cenas de janeiro de
2020 no calendário. Não passou tanto
tempo assim, mas no registro das memórias elas estão bem longínquas. São cenas que não fazem links com as
experiências do momento. Não tem sessão
de cinema para ir, não tem mais café marcado com as amigas.
A nostalgia do vivido
retorna quando minha irmã diz na tela do celular: vou te mandar uma receita de bolo deliciosa e
que é uma porção individual – lógico que é essa que eu preciso, já que estando eu
sozinha, o último bolo que fiz teve que ser congelado, pra não comer tudo sozinha,
antes que estragasse por falta de convidados.
Recebo a receita: bolo de rum. Mas será que tenho
rum aqui em casa?
Sim, aquela garrafa que
comprei na viagem à Cuba. Viagem maravilhosa! Passeios pela ilha de Fidel: Havana, Varadero,
Santa Clara, escadarias de música, mar do Caribe, todos juntinhos dentro de um
carro, cantando com o motorista cubano – que alegria!!! Cenas sem data para se repetir?
Hoje pela manhã escuto
no Podcast Café da manhã, sobre os passaportes da imunidade – o planeta
entrando em nova era para podermos circular pelo mundo. Agora, há risco de
formarmos castas a partir dos controles sanitários.
Novas referências para
se relacionar. Sem abraços, sem beijos,
mas máscaras, álcool gel, distanciamento físico e social.
Todas as telas que se
abrem me fazem lembrar e relembrar a cada minuto, que sou grupo de risco, que
posso ser riscada da vida como os quase 11 mil mortos.
Tristeza e dor da perda
dos entes queridos, que ficam sem poder ser ritualizada, dor que dói e vai doer
mais e mais....
Dor de ver nossa
herança musical indo....
Resposta do tempo:
“sussurra que apaga os caminhos... aprisiona e liberta... o tempo... ele zomba
de quando chorei, ele sabe passar e eu não sei... sussurra que apaga os
caminhos... mas eu desperto, eu posso, ele não vai poder me esquecer.”
Túnel do tempo; quem me
dera agora eu tivesse alegria, alegria, para caminhando contra o vento, houvesse
uma Roda Viva, com voz ativa pro nosso destino mandar.
Mas eis que chega o
destino e leva o tempo a girar, sem direção. Não posso no meu destino mandar.
Prepara o seu coração pras
coisas que ainda não sei contar, tempo de ver a morte sem chorar, que está fora
do lugar, vai dando voltas no meu coração, em Disparada.
Hoje, eu só sei que
daqui a 4 dias, vou ao mercado comprar bananas.
Yone
Maria Rafaeli é psicanalista, membro do Departamento
de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, ex-membro do Serviço de
Psicologia da Derdic-Puc-SP. É coorganizadora
do livro Audição, Voz e Linguagem: a clínica e o sujeito. São Paulo: Cortez,
2006.
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