O psicanalista na pandemia: alguns riscos
Nossa
colega Marcia Arantes discute
questões acerca do fazer do psicanalista no momento da pandemia. Estamos todos
no mesmo barco? Quais os impactos da pandemia e das sessões online na
transferência e na prática clínica de modo geral? Quais são agora e quais serão
os efeitos da pandemia sobre a psicanálise?
Confiram!
O
psicanalista na pandemia: alguns riscos
Marcia
Arantes
A frase “o mundo não será o mesmo após a
pandemia” tem ecoado em nossos ouvidos cotidianamente, vinda da boca de
jornalistas, comentaristas, profissionais de saúde.
Em nossas práticas como analistas, sentimos
os efeitos dessa crise. Alguns desses efeitos são evidentes, como o fato de
estarmos atendendo online a grande maioria de nossos pacientes. Outros não são
evidentes, e para eles devemos estar alertas. Repercutem na transferência, na
nossa escuta, no modo como valorizamos a associação livre e a atenção
flutuante.
Pandemia, palavra de origem grega,
significa aquilo que pode atingir todo mundo. Sim, ao pé da letra, se aproxima
do conceito de Lei, como aquilo ao qual todos estão submetidos como
participantes da cultura humana, como seres simbolicamente castrados. Quando se
trata de um ‘vírus’, é outra a forma como incide sobre nós. É o que nos escapa,
por excelência. Não vemos, não sabemos de onde vem, não sabemos como nos livrar
dele, não temos com explicar. É porque é, assim como a morte.
O fato de estarmos inseridos na mesma
emergência que o paciente, pode ter um efeito de sedução que nos leve ao engodo
imaginário de que ‘estamos todos na mesma’. A dimensão de realidade como
simbólico/imaginário pode se diluir.
O analista, para que a análise se
desenvolva, ocupa o lugar do suposto saber. É esse lugar que deverá sustentar
até que a análise chegue ao fim. Numa situação em que essa invasão virótica
domina e determina mudanças evidentes em nossas atitudes, expomos ao paciente
nossas apreensões, ou idiossincrasias, o que acarretará um efeito na transferência.
A condição própria do analista, que
permite a ele sustentar internamente o lugar do suposto saber, corre o risco de
se fragilizar. Identificando-se com o lugar de fragilidade, de impotência, pode
se desviar da escuta na qual reside sua potência, e que funda a própria
psicanálise.
Recentemente fui levada constatar, a
partir de uma discussão grupal, que quando lidamos com pessoas socialmente
desfavorecidas, que sofrem de privações gritantes, os limites de nossa
possibilidade de atuação podem soar estreitos, nosso trabalho pode parecer
pequeno. Sentimo-nos, como cidadãos, convocados a contribuir para a diminuição dessas privações.
É um momento em que se faz necessária a
distinção entre o exercício da cidadania e a função do psicanalista. Para que o
lugar do suposto saber se mantenha é condição que a ação concreta na vida do
paciente seja suspensa, que o analista aceite essa limitação. Não há como conciliar ambas as vertentes, uma
vez que, uma das funções da análise, entre outras, será desvendar os caminhos
de satisfação pulsional aos quais o paciente está atrelado, e que limita sua
possibilidade de atuar para solucionar os impasses da própria vida.
Essa restrição, a que Freud um dia
chamou ‘regra de abstinência’ permanece como um pilar, ao lado da associação
livre e da atenção flutuante. Ai está o ‘ouro’ da psicanálise. Espero, nesse
sentido, que a psicanálise permaneça a mesma durante a pandemia, ou durante
qualquer outra desgraça.
Continuar o trabalho de Freud de
desvendar as armadilhas do desejo, trazer à luz a compulsão a repetição,
desfazer os nós da construção do sintoma, das identificações que paralisam e
limitam a vida, inibe escolhas e ações, é aí que reside nossa potência como
analistas.
A psicanálise herdará marcas e
certamente não será a mesma após pandemia, mas não sabemos quais serão.
Cabe-nos estarmos abertos e ao mesmo tempo alertas para preservar sua essência.
Marcia
Arantes é psicóloga (USP) e psicanalista,
membro do Departamento de Psicanálise do Sedes e do Grupo de Intervenção e
Pesquisa Clínica: da gestação à primeira infância do Departamento de
Psicanálise do Sedes Sapientiae. Foi professora do Curso de Psicanálise do
Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae (1981 a 1997).
Ótimo artigo para refletir sobre o que muda e o que não muda na psicanálise em tempos de pandemia em tempos de uma inevitável experiência de desamparo que é horizontal e não assimétrica. Penso que é necessário não nega-la a cada sessão para então ocupar um lugar assimétrico na fala/escuta que mobiliza o circuito pulsional.
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