Um estranho na minha quarentena


Na crônica "Um estranho em minha quarentena" Danilo Furlanetto encara a si próprio na solidão do confinamento. Confiram.

Um estranho na minha quarentena

Danilo Furlanetto

Percebo-me novamente em minha modesta sala de estar, só, com a visão fixa num horizonte inexistente, para além da tela preta da televisão. Estático, à deriva na minha própria intimidade, como mais um móvel empoeirado compondo essa exaustiva moradia que costumava ser chamada de lar. O abajur ao lado, luz fraca, monocromática. A mesa de centro manca, sempre me encarando, cobrando-me: “Ei, você, vai ficar aí o dia todo?”. Tento não dar atenção a ela, afinal, é apenas uma mobília, mas também não deixo de pensar por um só segundo que talvez ela tenha razão, sábio pedaço de madeira. Já se vai mais de um mês de quarentena, ou seriam dois? Os dias fundiram-se uns aos outros, atropelaram-se, o tempo insiste em passar diferente, em driblar o calendário da parede do escritório, ao qual costumava ser tão fiel. Lembro-me das minhas férias escolares: como era bom ficar em casa, sem horário, sem rotina, sem contornos, sem contato com quem eu não queria ver. Que angústia. Estou farto de férias escolares. Bom, ao menos agora temos a tecnologia a nosso favor. Embora meu aparador insista em me fazer pensar, em nossas longas conversas silenciosas, que a virtualidade cansa, afasta, distorce. Acho que estou ficando velho demais, arcaico. Fiz aniversário esses dias, ganhei até um bolo virtual, com direito a velas e parabéns, apenas não pude comê-lo, tocá-lo, nem tampouco saboreá-lo. Saudades dos bolos reais e das pessoas de carne e osso que costumavam vir ao seu redor. Em meio à imensidão dos meus tão cotidianos pensares, algo me furta a atenção. Nunca havia reparado, jazia logo ali um vizinho, estirado a poucos palmos, perfeitamente emoldurado na janela de uma paisagem até então marasmática, parecia tão próximo, tão real. Tive vontade de convidá-lo a saltar a minha masmorra, assim poderíamos jantar juntos, quem sabe até nos tornaríamos amigos. “Que estupidez”, sussurrava o cabideiro. Realmente, chamar um estranho para dentro de casa, devo estar ficando louco. Mas havia algo nele, uma estranha familiaridade, era bem mais velho, tinha um ar abatido, mas inspirava a mesma vibração catatônica que em mim ressoava nos últimos tempos. Tive a impressão de que meu estranho vizinho me observava, olhando-me tão penetrantemente quanto eu o fazia. Pensei em desviar o olhar para alguma das minhas mobílias, uma visão mais familiar. Mas, corajosamente, insisti em encarar aquela figura oblíqua que ganhara destaque tão repentino nas cinzas da minha monotonia. Uma lágrima escorrera em seu rosto por meio aos fios assimétricos de barba crua. Um pesar me arrebatara. Esbocei ir até o parapeito e lhe endereçar uma ou duas palavras de conforto. Só que logo lembrei de mim mesmo, de minha própria penúria, dei-me conta de que, no auge de seu egoísmo, meu vizinho, aquela figura fantasmagoricamente torpe, nem sequer se moveu para consolar a minha tão evidente miséria.

O tapete surrado tagarelava sozinho, distraí-me, logo me esqueci desse estranho que, mesmo por alguns momentos (ou seriam horas?) invadiu minha sala de estar. Volto a buscá-lo com os olhos, mas me espanto ao constatar que ali, no lugar da minha janela, repousava um espelho. E o mais curioso: ele não havia dito uma só palavra nesse tempo todo.

Danilo Furlanetto é psiquiatra e psicanalista, mestre em Ciências da Saúde e professor de Medicina da Santa Casa de São Paulo. É aluno do Curso de Psicanálise do Sedes Sapientiae.

Comentários

  1. LIndo texto, sobretudo corajoso em reconhecer a fragilidade e o desamparo de cada um de nós! Nesse momento acentuados por essa pandemia, essa estranha desconhecida...

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  2. Danilo: obrigada pelo texto. Machado e Guimarães te fazem companhia. Quem sabe o seu espelho, em algum momento, devolverá uma imagem mais alvissareira. Aliás, para todos nós.

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  3. Me fez lembrar do conto "O alferes" de MAchado de Assis " !

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