“Pede-se fechar os olhos”, “Pede-se fechar as câmeras” – viagem de um sonho de outubro de 1896 para a necropolítica de outubro de 2024
“E nós com isso, para o que olhamos? O que sonhamos? O que nos é
invisível pelo excesso de luz? O que recusamos a ver em meio ao breu?”
Assim Tânia Corghi Veríssimo nos interpela, ao encerrar seu contundente texto, escrito em tons de uma
necessária inquietude. Confiram:
“PEDE-SE FECHAR OS OLHOS”, “PEDE-SE FECHAR AS CÂMERAS” –
VIAGEM DE UM SONHO DE OUTUBRO DE 1896 PARA A NECROPOLÍTICA DE OUTUBRO DE 2024
Todos nós conhecemos a famosa
expressão freudiana: “Pede-se fechar os olhos” ou “Pede-se fechar um olho”. Advinda
de um sonho narrado em outubro de 1896, teve como ocasião a morte de seu pai,
Jacob, e despontou em Freud como um aviso em cartaz, uma recomendação/advertência
a quem se envergonhava de ter organizado um funeral deveras modesto aos olhos de seus familiares e a um filho
que deveria agora fechar os olhos (ao menos um olho) para os aspectos
reprováveis da personalidade de um pai que acabara de perder.
Desse trecho podemos extrair
de imediato um pensar sobre a culpa e a tirania do supereu, bem como sobre
nossa inadequação frente à morte. Também é possível recuperar a frase: “pede-se
fechar os olhos” como comando essencial ao sonho em sua fabricação: algo
lógico, pois apagar o visível/dormir é condição para a figurabilidade da vida
psíquica, ao mesmo tempo paradoxal, já que, neste caso, está no fechar a possibilidade
de que algo magnificamente se abra no/para o sujeito do inconsciente.
A escritora Ana Martins
Marques nos diz que “o fotógrafo ama o claro e o escuro do mundo”. Começo a
pensar que nós, psicanalistas, também. Na verdade, amamos mesmo o movimentar
das luzes, transitamos entre o claro e
o escuro, não entre um ou outro. Acho
que, em nosso ofício, tratamos de sustentar uma espécie de lusco-fusco, entoando
um jogo entre a clarividência e a penumbra, tal como se perseguíssemos os
vagalumes de Didi-Huberman, que se fazem notar na escuridão, pois desaparecem
frente à claridade demasiada.
Perseguimos o jogo de
luzes – claro e escuro do mundo, fechar e abrir dos olhos – sabendo que este não
admite neutralidade, tampouco se encerra em debate dual. Como dissemos, pedir
fechar os olhos, ainda que necessário à tessitura de um mundo onírico,
consiste, sobremaneira, num aviso, numa advertência, num comando...feito por
quem? Quem pede/adverte que os olhos sejam fechados?
Estas questões
fundamentais convidam não perder de vista o debate sobre o movimento entre o
claro e o escuro, o fechar e o abrir, o psíquico embrenhado em lugar político.
Um debate, afinal, que não problematiza o contexto político no qual se engendra
o jogo pulsional - perde toda sua relevância, ganha toda sua iatrogenia. O
caminho de indagar as vozes de comando, as advertências, os cartazes que pedem “fechar
os olhos” - a serviço do que? – deve ser pavimentado, mesmo quando dissuadido.
Deve acontecer.
Há um pavimento que não
escapa ao imbróglio psíquico-político e se faz no caminho entre memória e narrativa,
através da ficção que agora alcança o Outro. Contempla a passagem da memória ao
arquivo, ao mal de arquivo, como disse Derrida. Sonhos, afinal, são arquivos
narrados sempre mal contados,
parciais, fragmentários. Arquivos, memórias que adquirem exterioridade, são sempre
sintomáticos, sofrem de um mal de
apagamento, são trabalhados por uma pulsão arquiviolítica empenhada em
destruí-los sem deixar traços, colocando o futuro em questão. Intenso é o
debate entre vias de possibilidade representacional e aniquilamento da mesma.
Daí não perder de vista, recusar-se a fechar os olhos para as motivações de
forças psíquicas-políticas de apagamento em atuação.
Embrenhada nesta
reflexão, proponho um giro: de outubro de 1896 para outubro de 2024. Do “pede-se fechar os olhos” freudiano em sua
força censora (e constituinte), parto para uma questão contemporânea que muito
nos implica.
Acompanhei impactada os
dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública neste mês de outubro de
2024. Indicaram que as mortes de pessoas negras e brancas pelas polícias Civil
e Militar de São Paulo aumentou em 78%. Antes de outubro, no primeiro bimestre
deste ano, o Ministério Público já havia anunciado um aumento de 94% de mortes
por policiais militares em São Paulo. Peles alvejadas pela letalidade policial,
pesquisas que reiteram peles negras como maiores alvos, maiores vítimas.
A crueza dos números não
exclui escutar a voz do comando dado pelo atual governador de São Paulo e por
seu secretário de segurança pública, ex-tenente da ROTA, conhecido pelos
excessos de mortes em serviço. Já estava provado que a implementação de câmeras
nos uniformes dos policiais militares em serviço reduziu substancialmente as
mortes de pessoas – em dois anos de uso de câmeras, as mortes caíram pela
metade. Já estava sabido que as câmeras foram meio eficaz para evitar a
morte...
Eis que o comando foi
um: “Pede-se fechar as câmeras!”, “Feche as câmeras!”, “Não use câmeras!”. O
governador assim ordenou. Do alto de seu autoritarismo necropolítico ameaçou
retirar o antídoto anti-morte da cena, ou seja, abolir o uso das câmeras dos
uniformes policiais. Depois “recuou”, optou pela implementação de câmeras menos
modernas, aquelas que não funcionam o tempo todo, mas ao sabor de cada policial
em campo que poderá acioná-la ou desligá-la quando achar ser o caso (e quando
será o caso?).
Sim, esta política
consiste numa espécie cruel de “pede-se fechar os olhos” contemporâneo. Um
pedido/comando que nada se parece com “dormir para sonhar” e “sonhar para
dormir”, mas que vem na contramão da criação de condições de preservação do
direito à vida, dos direitos humanos, da dignidade, da fabricação de sonhos. Uma
política adotada justamente para fabricar a morte e o extermínio cujo compromisso
se assenta na interrupção das condições de possibilidade de sonhos, brutalmente
abortados pela violência.
Mais empenhados estão em
azeitar a máquina necropolítica. Mais ordenam fechar as câmeras para que
fechemos os olhos para a brutalidade. Mais pedem o apagar das câmeras para
apagar arquivos denunciantes da desumanidade, para apagar sujeitos sem deixar
vestígios. Mais querem olhos fechados para que nunca mais se abram.
E que não haja nem
choro, nem vela, nem velório modesto.
E nós com isso, para o
que olhamos? O que sonhamos? O que nos é invisível pelo excesso de luz? O que
recusamos a ver em meio ao breu? Como recuperar o jogo das luzes: abrir e fechar
os olhos atentos aos comandos?
Tânia Corghi Veríssimo é membro do
Departamento de Psicanálise, doutoranda no IPUSP e membro do Grupo Direitos
Humanos, Democracia e Memória do IEA-USP.
Belíssimo texto, Tânia. No perverso fechar as câmeras, o reflexo do fechar os olhos para o horror que atravessa nosso cotidiano. Foi com os olhos fechados, de quem não quis reconhecer o que via, que as eleições nos deixaram às escuras. Não do sonho, mas do pesadelo
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